A água é azul: crianças e cientistas são menos afectados por daltonismo

Envolto na alternância entre o diletantismo e a veia laboral do fim-de-semana, alguns instantes antes do almoço, decidi iniciar a realização dos trabalhos de casa da disciplina de FQ A. Pegando no manual de Química e lançando a minha mente na leitura do texto que o professor seleccionara, estava a começar a ganhar interesse pelo tema abordado, quando me deparei com uma revelação surpreendente, que muito me espantou:

Pode pensar-se que os oceanos são azuis porque a água dos oceanos reflecte o azul do céu ou porque contém impurezas coradas, tais como sais de cobre. Mas a resposta é outra! A água tem uma cor própria. A água absorve luz vermelha no extremo do espectro visível, transmitindo a cor complementar, que é o azul celeste. A água que bebemos parece incolor porque a sua cor é muito ténue e é pouca a água no copo. Quando vemos uma grande massa de água (lagos, rios ou oceanos) apercebemo-nos logo da sua cor azul.

Nota: O livro de Química a que me refiro trata-se do manual escolar 11 Q, Física e Química A, Química – Bloco 2, da Texto Editores, escrito por João Paiva, António José Ferreira, Graça Ventura, Manuel Fiolhais e Carlos Fiolhais, numa edição datada de 2009. A passagem que pode ser lida acima diz respeito ao artigo “A água e a atmosfera”, correspondendo o excerto apresentado ao segundo parágrafo do texto, que se situa na página 86 do manual.

O mar, essa inesgotável fonte de mistérios infinitos, reluzindo na beleza do seu esplendor celeste.

O mar, essa inesgotável fonte de mistérios infinitos, reluzindo na beleza harmoniosa do seu esplendor celeste. O azul dos oceanos é mesmo muito especial.

Boquiaberto com a novidade arrebatadora que acabara de receber, li o parágrafo atentamente, totalmente concentrado na mensagem poeticamente subtil, veiculada por aquelas linhas muito simples, mas simultaneamente tão profundas. Procurei saborear cada palavra do excerto em todo o seu esplendor celeste, como se da revelação do segredo do universo se tratasse. De facto, a notícia não poderia ter tido mais impacto em mim, ao abalar radicalmente as minhas concepções acerca da cor do líquido da vida. Quem diria que a água é mesmo azul…

Percurso Pessoal

Quando somos pequenos e começamos a conhecer o mundo, somos levados a colocar questões sobre tudo e todos, sem limitações, na atitude natural de quem não compreende e quer compreender, não sabe e quer saber, na ânsia de descobrir as causas de tudo o que nos rodeia. Nesse tempo, vulgarmente designado idade dos porquês, não aceitamos nada só por si, queremos realmente entender as relações entre as coisas, para podermos conhecer a origem dos fenómenos, interrogando, para isso, os vultos de autoridade à nossa volta que nos inspiram confiança. As perguntas relativas aos motivos da coloração do mar e do céu são algumas das questões mais frequentes.

A água, responsável pela cor azul do nosso planeta, é a mãe de toda a vida na Terra.

A água, responsável pela cor azul do nosso planeta, é a mãe de toda a vida na Terra.

Com base na minha experiência pessoal, que provavelmente se assemelha à de muitas outras pessoas, posso dizer que uma das dúvidas que mais confusão suscitava em mim era a razão pela qual a água do mar era azul, sendo a água dos copos e das garrafas transparente. Não fazia qualquer sentido! Inicialmente, confrontado com esta grande ambiguidade acerca da cor da água, fui levado a acreditar que a água era azul à partida, pois a ideia de azul era mais apelativa para mim, tal como a concepção do mar era mais preponderante do que a ideia de um bocadinho de água num copo. Porém, por qualquer razão, quando a quantidade de água era pequena, o raio do líquido como que perdia a cor! Era muito estranho… A água devia mesmo ser uma coisa muito especial.

No entanto, tendo em conta as respostas que iam surgindo em redor e com base na minha interpretação dos fenómenos, fui alterando a minha opinião, gradualmente, ao longo dos anos. Começava a ver a água como uma coisa realmente transparente, sem cor, cultivando a ideia de que o azul do mar se devia a qualquer razão associada ao fundo dos oceanos. À medida que ia progredindo na escola, frequentando as aulas de ciências naturais, ou talvez mesmo antes disso, fui confrontado pela primeira vez com a expressão incolor, a propósito da água, que vinha confirmar a minha ideia anterior de que a água não tinha cor própria.

De resto, o aprofundamento dos meu conhecimentos científicos nos anos seguintes e o desenvolvimento das minhas faculdades racionais ia construindo explicações cada vez mais aceitáveis para a coloração azul dos oceanos. Talvez o motivo se prendesse com as elevadas concentrações de sais da água do mar… Ah! Mas os rios e lagos também eram azuis e praticamente não tinham sal! De qualquer forma, a água doce também poderia conter outras impurezas que conferisse uma cor azulada a qualquer reserva de água do planeta… Por fim, ainda se mantinha de pé a teoria segundo a qual os solos seriam os principais responsáveis pela coloração da água, com o azul a ser proveniente de certas substâncias existentes nos fundos ou libertadas por eles…

Todas estas hipóteses, por muito racionais que sejam, afluíam à minha mente de uma forma muito mais desorganizada do que aquela a que recorri neste parágrafo. Este pragmatismo coerente nunca esteve presente nas minhas descontraídas análises do problema em questão, suscitadas por raros fluxos de inspiração metafísica, que me tomavam em momentos de contemplação marinha. Ao fitar a vastidão azul do oceano, no seu brilho descomunal e misterioso, era tomado por um sentimento de admiração profunda, mas incompreendida, sendo que a insatisfação cognitiva do meu ser me impelia a questionar as causas de tão grande beleza natural. Porém, a poesia do mar restringia a minha frieza racional, mitigando o meu poder de pensamento, lentamente absorvido pela suave brisa emanada pelo oceano.

Agora: a verdade surge, rompendo por entre a neblina

Cascatas de Água Azul, em Chiapas, no México.

Cataratas de Água Azul, em Chiapas, no México. A cor azul da água é bem evidente nesta prodigiosa maravilha natural do nosso magnífico planeta.

Agora sei a verdade. Contudo, foi preciso esperar 16 anos e 10 meses para conhecer realmente o motivo da coloração azul dos oceanos! Uma questão tão simples, com uma resposta tão bela e subtil, ao meu alcance há tanto tempo, pelo menos em contornos gerais, mas que eu só descobri hoje, por um acaso escolar fortuito. Mesmo considerando a componente mais científica da questão, não é assim tão difícil entender que a água absorve a radiação vermelha, transmitindo a radiação no extremo oposto do espectro visível, que corresponde ao azul! Tratam-se de conhecimentos básicos leccionados no 3º ciclo que todos a população devia dominar! E, mesmo assim, quantas pessoas há por esse país fora, e por esse mundo, que não conhecem a verdadeira razão da cor azul do mar? E quantas não saberão sequer que a água é, em si mesma, azul? É curioso, não é?

Na verdade, o meu percurso ao longo dos anos, no que respeita à descoberta da solução para este enigma, pode ser descrito muito facilmente. Comecei no zero, quando nasci, pois nada sabia do mundo em redor. No entanto, enquanto ia dando os primeiros passos neste planeta, fui começando a adquirir dados que me permitiram colocar questões, para as quais apenas encontrava respostas incompletas, numa fase em que conhecia a verdade, pois julgava que a água era efectivamente azul.

Posteriormente, a falta de conhecimento das causas e a interpretação incorrecta dos dados levou a minha mente a cometer erros, tirando conclusões precipitadas, pelo que a minha opinião se alterou drasticamente, afastando-se da verdade. Esta foi, indubitavelmente, a pior fase de todas, dado que eu achava ser detentor da verdade, quando nada sabia realmente, numa ignorância cega semelhante àquela que produz o preconceito. Felizmente, a atenção do meu professor de Física e Química a pormenores desta natureza não consentiu o prolongamento deste sono cognitivo e acordou a minha alma científica para a mais linda verdade natural.

Filosofia e Ciência: semelhança na diferença

Não posso deixar de fazer uma analogia entre este pequeno fragmento da história da minha vida e a tese defendida pela maioria dos filósofos, magistralmente apresentada por Jostein Gaarder na sua obra O Mundo de Sofia, que aconselho a todos os leitores. Passo a apresentar essa mesma mensagem, contemplando os vários aspectos em causa:

O filósofo e autor norueguês Jostein Gaarder e a sua mais famosa obra, O Mundo de Sofia. Aconselho vivamente a sua leitura a todas as pessoas interessadas em aprender, pois constitui uma experiência fenomenal no conhecimento da realidade humana e do universo, embarcando o leitor numa viagem alucinante pela História da Filosofia Ocidental.

O filósofo e autor norueguês Jostein Gaarder e a sua mais famosa obra, O Mundo de Sofia. Aconselho vivamente a sua leitura a todas as pessoas interessadas em aprender, pois constitui uma experiência fenomenal no conhecimento da realidade humana e do universo, embarcando o leitor numa viagem alucinante pela História da Filosofia Ocidental.

Nos primeiros anos de vida, as crianças, curiosas por natureza, questionam tudo o que lhes surge diante dos olhos, adoptando a atitude filosófica por excelência: duvidar do mundo, com uma grande abertura espiritual. Ao longo do processo de crescimento, as pessoas vão aceitando as respostas que lhes são apresentadas, conformando-se com as soluções vindas do exterior (ou do interior) sem as questionarem e testarem, perdendo as suas faculdades filosóficas. Podem, contudo, regressar aos tempos de criança, tornando a duvidar das respostas que lhes são impostas pela sociedade ou por elas próprias, adoptando uma perspectiva ponderada e crítica em relação a tudo, o que as pode conduzir a grandes progressos na procura da verdade. Quando alguém toma tal atitude, um novo filósofo nasceu!

O autor norueguês de O Mundo de Sofia consegue ilustrar esta situação na perfeição com o recurso à alegoria da pelagem do coelho. Nesta situação, a criança começa por ocupar a camada superficial do pêlo, numa posição privilegiada para a contemplação da verdade, simbolizada pela realidade exterior ao coelho. O processo de crescimento corresponde a um escorregamento do indivíduo para as camadas mais profundas da pelagem, onde permanecerá em completa escuridão, obscurecido pelas ideias preconcebidas que alimenta, longe da luz e claridade do mundo exterior. Porém, o filósofo tem a virtude de não se deixar satisfazer pelas respostas provisórias que lhe são apresentadas e inicia uma longa e difícil ascensão ao longo do pêlo do roedor, procurando a verdade universal, a pureza da luminosidade exterior!

Com a minha experiência acerca da cor azul da água sucede exactamente a mesma coisa! Comecei por estar perto da verdade, mas a falta de conhecimento das causas impeliu-me para os reinos da escuridão, até um súbito raio de luz iluminar o meu espírito originalmente curioso, mas confinado a ideias falsas, trazendo-me de volta aos domínios da claridade, e desta vez de forma definitiva, tendo em conta a existência de um elo de sabedoria. A principal diferença em relação à tese descrita reside no facto de esta minha história estar ligada a um assunto fantástico de carácter científico, enquanto a teoria descrita anteriormente se refere à filosofia em todo o seu esplendor.

Afinal, as crianças estão mais perto da verdade, ao serem levadas pela sua força espiritual interior a acreditar no que os sentidos lhes dizem, que a água é azul. E certos estão também os cientistas, que, tomados pela sede de conhecimento, investigam arduamente os vários pontos da questão, acabando por descobrir a verdade, compreendendo os motivos que explicam o fenómeno. E, assim, só as crianças e os cientistas conhecem a verdade, ao contrário das outras pessoas, que ignoram a verdadeira cor da água, quando a resposta está diante dos seus olhos. Da mesma forma, em questões do foro filosófico, são as crianças e os filósofos quem está em contacto com a verdade (ou mais perto dela).

O azul da água é uma verdade universal, que pode ser confirmada cientificamente. Uma vez esclarecidas as sempre interessantes questões da Física, deleitemos a alma com a beleza nostálgica dos azuis marinhos. Inspiremos a aragem profunda emanada pelos mares e deixemo-nos levar pela melancolia macia das águas, ao sabor das ondas celestes do implacável oceano.

O azul da água é uma verdade universal, que pode ser confirmada cientificamente. Uma vez esclarecidas as sempre interessantes questões da Física, deleitemos a alma com a beleza nostálgica dos azuis marinhos. Inspiremos a aragem profunda emanada pelos mares e deixemo-nos levar pela melancolia macia das águas, ao sabor das ondas celestes do implacável oceano.

Assim se prova que, apesar de se tratarem de áreas mesmo muito diferentes,  a filosofia e a ciência apresentam muitas coisas em comum, sendo a principal semelhança esta atitude de questionar, duvidar das nossas respostas aos problemas do mundo e vontade de descobrir a verdade. É esta a base de qualquer tipo de conhecimento e, consequentemente, de tudo o progresso da humanidade.

Dedicatória

Para terminar, gostaria de expressar e minha vontade de que este post fosse recordado como um hino à juventude e, em particular, à infância, dedicando o texto a todas as crianças cientistas e filósofas do mundo no momento em que este post está a ser lido.